Mais um apontamento solto do segundo dia da descida
Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too
Imagine all the people
Living life in peace...
(excerto de Imagine, de John Lennon)
"Frontalmente contra fronteiras
De que serve haver um rio que liga as margens
Se os homens as separam com fronteiras
Há milénios qu'há vida nestas paragens
Separada por costumes e barreiras.
Encontrei aves e peixes nas viagens
Iguais em tudo, de todas as maneiras
Não se distinguem em raças nem linhagens
O seu mundo são estas terras inteiras.
Duas margens iguais em aparência
Uma terra que o homem separou
Dividir p'ra reinar é uma ciência
Que o diga quem na terra soçobrou
Vencido p'la mais dura violência.
O homem fez o que o rei e deus mandou:
Dividiu, por sua conveniência
E quem manda, por mais tempo dominou. "
(Paulo Emanuel, Agosto 2010)
Decididamente o calor afecta o cérebro. Se ontem apenas com o calor da noite deu no que deu, nem imagino o que vai sair daqui hoje, a descer o rio à torreira do sol.
Nem uma arvorezinha para dar sombra, isto parece ter sido projectado por Siza Vieira...
Já por várias vezes atravessei fronteiras, mas esta foi a primeira vez que percorri uma. E com várias horas de caminho pela frente, houve tempo de sobra para observar muita coisa e para pensar outras tantas. Se é verdade que o calor dilata os corpos, imaginem o tamanho dos meus neurónios pensadores, sob este sol inclemente que nem um chapéu nem o protector solar factor 20 conseguiam aplacar.
A parte esquerda da imagem é Portugal, a parte direita é Espanha
(Ribeira da Chança)
No segundo dia da descida, a viagem decorreu toda em águas internacionais. Não sei se é esta a designação correcta para as águas de um rio que serve de fronteira. Enquanto no primeiro dia as duas margens do rio eram portuguesas, a partir de Pomarão a margem esquerda (e a metade esquerda do rio) é espanhola.
Olho à minha volta e tento descobrir alguma coisa que distinga a terra à minha esquerda da que está à minha direita. Puxo pela memória e recuo até ao dia anterior, em que também desci o rio embalado pelo sobe e desce de montes e vales na margem esquerda e na margem direita. Não encontro diferença alguma. Porque não há. Mas ela existe. Bem ali à frente da proa da canoa e estendendo-se até ao horizonte está uma linha amarela que eu não vejo, pintada com a mesma tinta com que imprimem os mapas, e que me diz que à minha direita pago o pão com escudos e à minha esquerda compro caramelos com pesetas.
A água é igual numa metade ou noutra do rio, a terra é igual na margem esquerda ou na direita, os arbustos (é preciso muito boa vontade para chamar àquilo árvores) são iguais dum lado e doutro do rio, os peixes nem sequer sabem que o rio tem duas metades, as aves, do alto do seu vôo, vêm apenas uma terra, atravessada por um rio. Tudo é igual, até mesmo as horas dadas pelo relógio de sol.
Só nós, pobres passantes, sabemos que há diferenças. Só nós temos relógios tecnologicamente mais evoluídos que o de sol, que nos dizem que à nossa direita são 10h e à nossa esquerda 11h.
E isto espantosamente acontece precisamente no mesmo local e à mesma hora. Deve ser a isto que chamam de relatividade.
Estes factos não os sei classificar, mas os meus pensamentos sei, e são claramente anarquistas. Se eu já era anarquista, mais anarquista fiquei. Bendito Sol que apanhei na moleirinha.
Porque a lógica é esta:
Há sempre alguém que manda na terra, infelizmente digo eu.
Havendo uma terra há só um a mandar.
Dois a mandar na mesma terra não pode ser, dá muita confusão.
Portanto quando há mais alguém a querer mandar, divide-se a terra.
Um manda num lado, o outro manda no outro.
Quanto mais “mandões” houver, mais se divide a terra.
Isto dito assim até parece simples, mas na prática não é. Porque as divisões não são feitas com máquina de calcular mas com espingardas e canhões.
E porque raramente um “mandão” vai em pessoa dividir o que quer que seja, envia os seus voluntários à força.
E isto passa-se em todos os Guadianas deste mundo, que serviram ou servem de fronteira.
Aqui chegado, porém, uma dúvida me assalta: se não houvesse esta fronteira, seriamos todos portugueses ou espanhóis?
Glup, nem quero pensar nisso!
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